quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

A regra de ouro de Eugenio Bucci.

Não faça com os outros o que você não quer que façam com você. Simples, não? Trata-se
de uma norma básica de conduta, uma norma elementar, óbvia. É chamada de "regra de ouro",
pois é um princípio ético universal que aparece em quase todas as filosofias morais, em quase
todas as religiões.

O que faz todo o sentido. Sem que se pratique minimamente a "regra de ouro", a vida em
sociedade é inviável. Basta raciocinar pelo inverso: o que seria de uma comunidade em que
cada um fizesse ao próximo exatamente aquilo que não tolera para si mesmo? Não vale
responder que aconteceria o que vem acontecendo com as grandes cidades brasileiras.
Seria um exagero. As metrópoles se deterioram a cada semana, sem dúvida, mas ainda há
nelas um mínimo laço social; mesmo no pior caos urbano resta uma pontinha da noção de
reciprocidade ética. Mas há um lugar brasileiro em que a "regra de ouro" já foi pelo ralo. Esse
lugar é a televisão: nela, o sujeito que manda no espetáculo impõe aos outros o que jamais
admitiria para si. Parece um absurdo, mas é apenas um fato.

Comecemos pelo grotesco. O TV Folha da semana passada trouxe uma reportagem
("O barato das baratas", de Carla Meneghini) sobre a dieta servida nessas gincanas
calculadamente enojantes que estão na moda.
Lá pelas tantas, os voluntários são obrigados a engolir minhocas, larvas, baratas. Uma
apresentadora entrevistada pela reportagem declarou que não comeria nunca os "pratos" que
oferece aos convidados. Ou seja, ela mesma não aceita pôr na boca o que oferta aos seus
astros anônimos.

Alguém pode argumentar que não há nada de tão errado assim com a apresentadora
bonitinha que, afinal, como dizem, só está divertindo a "galera" (essa expressão, "galera",
deveria ser considerada também um prato asqueroso).
Não haveria nada de errado não fosse o fato de que seu cinismo reproduz, com ar de
inocência, o traço dominante da TV contemporânea: o desprezo pelos outros. Aí, o que seria
mera diversão adquire uma conotação mórbida. Os rituais de flagelação viraram uma epidemia
nas TVs do mundo inteiro, todos sabemos, mas, no Brasil, eles contêm um requinte de
humilhação de classe.

Silvio Santos é exemplar nesse quesito. Ele gosta de atirar sobre o auditório notas de R$ 50
dobradas como aviõezinhos. Aí, enquanto suas "colegas de trabalho" se estapeiam pelo
dinheiro, o animador exercita sua gargalhada em falsete. Pergunto: ele recomendaria a seus
familiares que fossem ali disputar um troco na base da unhada? De jeito nenhum. Silvio Santos como a apresentadora desavisada, convida os outros a um ridículo que recusaria para a sua
família.

Os programas de mais ibope são os que vão mais longe no esporte de humilhar. Nos
auditórios sensacionalistas do final de tarde, as tragédias íntimas dos mais pobres, sempre os
pobres, são convertidas em quadros humorísticos. Nos "reality shows", os competidores se
mostram do avesso em troca de um instante de celebridade.

Os animadores se fartam de rir. O vexame é dos outros, não dos animadores e muito menos
dos magnatas da TV. Estes ficam de fora. Aos seus próprios herdeiros tentam proporcionar o
que pensam ser uma boa formação, com escolas no exterior e tudo. Dificilmente recomendariam
que seus filhos e netos assistissem com assiduidade aos programas que eles oferecem todos os
dias aos filhos e netos dos outros.

A televisão no Brasil não é apenas o lugar em que a "regra de ouro" é invertida: ela muitas
vezes é o assassinato da "regra de ouro", é o veículo para ofensas aviltantes contra o próprio
público. A TV às vezes parece ser feita não para o povão, mas contra o povão, algo assim como
um desaforo. A TV é o verdadeiro prato de vermes que vai goela abaixo dos outros, mas nunca é
servido à mesa dos magnatas. Estes teriam vergonha. Ou nojo. Pelo menos isso.

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